Inquisição, coronavírus e corrução
01 de junho 2020
Autora: Gabriela Guimarães
No início do século XIII, o Papa Gregório IX organizou a Inquisição Pontifícia com o objetivo de reprimir heresias, em outros termos, o que era contrário aos preceitos da religião.
Na época ele declarou que o gato era uma criatura diabólica, resultando em um massacre do animal em toda Europa.
Mas não apenas os gatos foram associados ao mal. Acreditava-se que as pessoas, principalmente as mulheres solteiras que tinham gatos, realizavam práticas de bruxaria e, por isso, juntamente com seus animais, eram condenadas à morte.
O resultado do que chamaríamos hoje de #FAKENEWS eram denúncias contra proprietários de gato e praticantes das ciências proibidas, satanismo e bruxaria, que resultaram em milhares de mortes e, obviamente, em um clima de insegurança e medo.
Além das perseguições e matança, surgiu com a nova crença um problema ainda maior, o surto da Peste Negra.
O massacre dos gatos resultou no crescimento descontrolado da população de ratos, que eram os hospedeiros ideais para as pulgas que abrigavam as bactérias causadoras da peste. A Peste Negra foi o primeiro grande surto europeu de peste e a segunda pandemia de que se tem conhecimento, e estima-se que matou até 200 milhões de pessoas na Idade Média.
Muito tempo se passou desde esses acontecimentos, mas a história parece se repetir em alguns aspectos e em diferente proporção nos tempos atuais.
Proliferam nas redes sociais a ideia de que o vírus COVID-19 foi criado pelos chineses. Se por um lado, o país que é comandado por um regime autoritário comunista ganha destaque em função da dependência de outros países quanto aos produtos, principalmente os hospitalares, que nele são fabricados, por outro, vê-se o crescente risco de xenofobia e outros crimes de etnia e origem.
A xenofobia, que é um crime de ódio, pode desencadear não apenas agressões virtuais (moral e psicológica), como já observadas e repudiadas pela ONU, mas em agressões físicas e mesmo incitação a crimes.
Práticas que caracterizam em xenofobia:
- Fazer comentários desrespeitosos sobre o povo, a cultura e o local em questão;
- Inferiorizar os costumes, as tradições e as pessoas;
- Acusar o imigrante de atrapalhar a vida local em que hoje mora;
- Comparar seu local de origem com o da vítima, ridicularizando-a;
- Considerar a vítima inferior intelectualmente devido à sua cultura.
Trata-se de um problema social que pode vir a ganhar maior repercussão e adesão, se as medidas devidas não forem tomadas pelas autoridades e mesmo pela sociedade civil. Das escolas e empresários/ executivos aos veículos de mídia, compete a todos aclarar os fatos e acalmar a população. Atos isolados de preconceito, racismo e discriminação, por exemplo, demissão ou não contratação de pessoas de origem chinesa, ou mesmo proibição de uso de transporte público, devem ser repudiados.
Associar todos os chineses ao coronavírus seria como levar, novamente, todos os proprietários de gatos à fogueira. Enquanto acreditar em “teorias da conspiração” divulgadas nas redes sociais sem a devida diligência, é o mesmo que adotar a crença de que as mulheres solteiras estão mais propensas às práticas de bruxaria.
Mas agressão e intolerância não vêm sendo observadas apenas contra os chineses. Pessoas que tossiram em público ou apresentaram qualquer sintoma suspeito do COVID-19, mesmo sendo estes comuns a outras enfermidades, vem sendo alvo de atos cruéis. Nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador mulheres foram agredidas e chutadas para fora de ônibus devido à ausência de máscara ou tosse, como se bruxas fossem.
Infelizmente, comportamento similar, também vem sendo identificado em autoridades, que mal-informadas ou de forma abusiva, à semelhança de inquisidores, tem dado a “sentença final” a alguns que praticam a desobediência civil quanto ao uso de máscaras – a obrigatoriedade de uso de máscaras não parece alcançar alguns políticos e mesmo apresentadores de TV, como bem desafiou Caio Copolla.
Mas, se já não bastasse o mar de crueldade que temos visto ganhar as ruas e internet, estamos à beira de uma nova peste, A CORRUPÇÃO em grandes proporções facilitada pela flexibilização dos processos de contratação pela Administração Pública em decorrência da decretação de estados de calamidade.
Os protagonistas continuam os mesmos, ratos que correm pelos corredores de Brasília e repartições públicas em todas as esferas dos entes federados, e pulgas que parasitam agentes públicos em simbiose sistêmica.
Agentes públicos (e não apenas políticos) e profissionais da iniciativa privada (não apenas os empresários), CORRUPTO e CORRUPTOR, aproveitam a “caça às bruxas” – aos chineses, desobedientes e potenciais contaminados(res) – para saquear os cofres públicos.
Superfaturamento, entrega parcial ou divergente do objeto da compra, contratações dissociadas do dano e evento que provocou o decreto do estado de calamidade pública e mesmo aparente decretação do estado de calamidade apenas com o objetivo de recorrer aos cofres públicos e usar da situação para uma “disfarçada” campanha eleitoral. A ganância, oportunismo e indiferença dos corruptos e corruptores parecem ter alcançado níveis mais elevados do que o dos termômetros dos acometidos pelo COVID-19.
A corrupção ganha corpo e forças e como uma peste varre os cofres públicos prejudicando ainda mais o insatisfatório sistema de serviços públicos. Esta torna-se evidente com as milhares de pessoas que vem morrendo nas portas e corredores dos hospitais sem atendimento, situação que possivelmente seria em menor proporção, não fosse a cultura corrompida ainda presente em nosso país.
O COVID-19 mata, mas não mais que os ratos e pulgas (agentes públicos e profissionais da iniciativa privada, corruptos e corruptores) que tiram do estado sua capacidade de prover os serviços essenciais, dentre eles o de saúde.
Se ao longo de seis séculos da era cristã, a Inquisição atuou de forma bárbara, atingindo as esferas política, econômica, social e cultural da sociedade cristã, a fatídica situação criada pela corrupção no Brasil, acentuada pelo COVID-19, não se mostra diferente: instabilidade política, iminente depressão econômica, drama social e mudança cultural já se instauraram, denotando que o futuro é incerto.
Resta a nós, brasileiros, povo da esperança, nos unirmos contra as pragas – ratos e pulgas – denunciando-as e apoiando as tantas operações para seu combate. Também, tratar a verdadeira causa do problema, o que permite a sua “proliferação”: voto INconsciente ou corrompido e a fragilidade dos sistemas de controles internos da Administração Pública (a eficiência nos controles preventivos evita o problema).
Que nos debrucemos nas janelas não para “confronto” de panelaços e xingamentos, mas para observar os atos dos agentes públicos, denunciar a atuação indevida e saudar aqueles que protegem nossos interesses: Ministério Público, Tribunais de Contas, policias civil e federal e organizações da sociedade civil.
Fonte: Estadão